Uma obsessão contagiante
Novo ” hit ” da Netflix, Bebê Rena vem dando o que falar. História baseada em fatos reais dominou a audiência da plataforma de streaming em abril e conquistou uma aceitação quase que unânime do público. É uma minissérie curta, que parte de um relato pessoal e conturbado do escritor Richard Gadd, polemizado até num ambiente externo á biografia encenada, principalmente com a rejeição de fidelidade aos eventos, manifestada pela hipotética figura real por trás da personagem Martha, retratada em Bebê Rena como uma stalker obsessiva e potencialmente perigosa, na qual rege toda a problemática principal da obra, partindo de uma relação cada vez mais destrutiva.
O próprio Richard Gadd buscou manter a fonte biográfica como uma realidade inacessível, mas o sucesso da minissérie desencadeou um midiático discurso de veracidade vs ficção misógina apresentada pelos lados reais da narrativa, em uma previsão de deixar a minissérie e tudo que a envolve na boca do público por um bom tempo.
A minissérie foi lançada em abril com produção de Gadd e com direção dividida entre Weronika Tofilska ( até então diretora com vasta experiência em curtas ) e Josephine Bornebusch ( atriz, que estrelou Solsidan ). Ambas conseguem realizar um episódio piloto incrivelmente pegajoso ao decupar múltiplas informações introdutórias em uma cadeia diegética de enunciação, seguidos de estímulos bipartidos entre uma tensão sugestiva com estilo de thriller á uma sensação de segurança e insegurança.
Ai se revela uma metalinguagem potente, que parte do conhecimento do protagonista Donny ( Richard Gadd ), da sua maneira de nos contar á sua jornada na problemática e da progressão dinâmica sobre nossa própria perspectiva.
Donny Dunn trabalha num bar em Londres, enquanto tenta desesperadamente alimentar seu sonho de ser um comediante de sucesso. Socialmente devastado com as rejeições responsivas ás suas tentativas de se validar como um grande comediante, Donny é um personagem absolutamente perdido em suas relações afetivas e profissionais. Tudo muda quando Donny começa a se afeiçoar por uma cliente, Martha ( Jessica Gunning ). A relação entre os dois, que inicialmente é cheia de boas expectativas, logo vai se tornando cada vez mais obsessiva, com Martha perseguindo Donny constantemente e o exigindo uma atenção cada vez mais desproporcional.
Nessa noção de segurança ou insegurança agarrada pela tensão dinâmica da direção e espalhada frontalmente no episódio piloto, Martha representa esse revezamento entre peculiaridade e bizarrice potencialmente perigosa e obscura que proporciona essa visão crônica da minissérie em expôr limites do que é natural e o que é obsessivo. E a grande sacada é turbilhar essa semântica na idealização consciente de Donny á essa situação e confronta-la diretamente com seus sentimentos cada vez mais confusos, criando uma sequenciação bem intensa de moralismo deturpado.
No qual, a segurança vira a peculiaridade da personagem, enquanto insegurança é o comportamento bizarro e a sujeição intromissiva advindo da personagem, interpretada genuinamente por Jessica Gunning, que encena uma perfeita variação de conforto sugestivo e irritabilidade periculosa e radical, permitindo essa soma de dúvidas e inquietações que guiam os demais episódios.
A partir disso, a história se fixa ainda mais em Donny, da observação confusa dessa bipartição estranha remexida dentro de si e se apegando a esses estímulos absolutamente inéditos que ele sente em Martha, em paralelo as contextualizações necessárias que moldam Donny á sua profissão e esse mundo de relações ” extra-controláveis “ que a série nos provoca.
Há um aspecto de ilustração onipresente, de caráter sempre ambíguo e metafórico que acompanha a narração de Donny ( o próprio Gadd trabalhando na biográfica e salientando constantemente a veracidade dos fatos ) , e que também compõe as cenas e a amplitude da tensão com uma mise en scéne sombria, neurótica e até maneirista as vezes, deixando muito evidente a desconstrução emocional de Donny e para intensificar as ramificações emergenciais da trama – algumas se transformam em exemplos panfletários para uma conexão mais explícita com problemas reais espelhados na trama, como abuso sexual e comportamento obsessivo.
O elenco de apoio tem o destaque da personagem Teri ( Nava Mau ), que funcionando como um tópico afetivo do protagonista, retrata de forma lúdica, uma visão analítica de Donny ,revelando através de discussões e atenções sentimentais captadas na montagem, seus maiores desafios em suportar seu próprio descontrole emocional, apimentado constantemente pela relação obsessiva de Martha. Com Teri também se tem uma linha de identidade sexual que até se constrói bem durante os episódios, ajudando a desenhar definitivamente a neurose turva e gradativa de Donny em descoberta de suas próprias angústias e inseguranças. Só me incomodei com o fato da transexualidade de Teri ter tido pouco desenvolvimento em valor introspectivo dela própria, citada superficialmente e com certa implicitude desnecessária.
Bebê Rena não consegue evitar uma narrativa cíclica em alguns momentos, principalmente quando algumas explicações parecem ficar mais rasas para certas ações de Martha e quando essas próprias ações perdem aquele maneirismo criativo dos primeiros episódios, mas não há nada que realmente produza uma sensação de cansaço. Tudo é bem dinâmico, potencializado também pelas excelentes atuações que cumprem essa exigência de constante transfiguração, que encena trauma, obsessão, confusão mental, angustia e ansiedade com muito louvor, encarnada nas performances sensacionais de Richard Gadd e Jessica Gunning.
Compensa o nosso investimento com uma conexão mórbida, pesada e ao mesmo tempo interessante que rechaça a dependência emocional e as consequências da auto-estima mal avaliada. Não responde totalmente aos elementos criados, tendo algumas dificuldades em tirar alguns personagens da superficialidade ( como a Keeley e a mãe dela ), mas por sorte, consegue estabelecer essa ardente e viciante realidade de obsessão contagiante. Que desarma muito bem uma noção unilateral de vítima ou de culpado. De todo modo, acabamos ficando a mercê disso.
NOTA FINAL
4
★ ★ ★ ★
Autor: Flávio Júnior
Flávio Júnior