Devil May Cry da Netflix falha em honrar o legado de uma das maiores franquias de Hack n’ Slash dos videogames, apresentando problemas fundamentais que comprometem tanto a experiência dos fãs mais HARDCORE quanto dos novos espectadores.
ᐳ Entre nostalgia e decepção: um encontro pessoal com Devil May Cry

Voltando um pouco no tempo, lembro-me do meu primeiro contato com a franquia Devil May Cry por meio do seu quarto título, lançado em 2008.
Na época, eu tinha um Xbox 360 e um PlayStation 2, e já havia experimentado outros jogos do gênero Hack ‘n Slash, como Kingdom Hearts 2 e os famosos God of War. Confesso que, num primeiro momento, não morri de amores pelo jogo — em especial pela narrativa, que me deixou completamente perdido.
Claro, isso não foi culpa da Capcom. Eu é que não havia jogado os títulos anteriores, o que limitou bastante meu entendimento da história. A partir dali, infernizei meus pais em busca dos jogos anteriores para que eu pudesse, assim como diziam meus colegas da época, me deleitar com o melhor gameplay do gênero.
E não deu outra. Foi amor à primeira gameplay
Com uma trilha sonora marcante e uma jogabilidade divertida e viciante, até mesmo as tosquices da trama — que à primeira vista parecia rasa — se tornaram parte do charme. Devil May Cry virou um ícone na vida de muita gente, especialmente daqueles (como eu) que buscavam, acima de tudo, a diversão que só um bom jogo frenético podia proporcionar.
Mas, por que começar com uma introdução tão pessoal, se o propósito de uma crítica é, geralmente, ser imparcial e analisar a obra separadamente de outras adaptações?
Bem… se a série da Netflix usasse a narrativa com coerência, respeitando o valor da obra e seu lugar bem definido na cronologia da franquia — ao invés de depender de referências soltas para tentar fisgar os fãs mais antigos — talvez eu pudesse analisá-la como um produto independente.
Entretanto, não é o caso. E é aí que o problema começa.
A série, produzida por Adi Shankar (conhecido por Castlevania), se posiciona como uma história paralela ao cânone oficial dos jogos, mas ainda assim faz questão de estabelecer inúmeras conexões narrativas e visuais com a franquia original. Esta escolha, que poderia ser um ponto forte, acaba se tornando um dos diversos problemas da produção.
ᐳ Narrativa fragmentada e inconsistente
O principal problema de Devil May Cry reside em seu roteiro inconsistente. Assinado por Shankar e Alex Larsen, o texto navega sem rumo entre diferentes temas, subtramas e personagens sem conseguir estabelecer uma linha narrativa coesa que sustente os oito episódios.
A premissa básica – Dante, em seus anos iniciais como caçador de demônios, entrando em conflito com o governo americano enquanto um misterioso vilão busca derrubar a barreira entre o mundo humano e o inferno – é potencialmente interessante, mas a execução é problemática. A história frequentemente se perde em digressões desnecessárias e subtramas que não se desenvolvem adequadamente.
O ritmo narrativo é particularmente prejudicial: os primeiros episódios são sobrecarregados de exposição verbal, enquanto os episódios finais aceleram abruptamente em direção a um clímax que não recebe o desenvolvimento necessário. Esta inconsistência faz com que mesmo os momentos potencialmente impactantes da trama percam força e significado.
ᐳ Descaracterização
Talvez o aspecto mais decepcionante para os fãs da franquia seja a forma como a série retrata seus personagens, especialmente seu icônico protagonista. Dante, conhecido nos jogos por sua personalidade carismática, irreverente e até mesmo bastante competente, surge aqui como uma versão diluída de si mesmo: um caçador sem a habilidade, confiança ou presença de cena que definem o personagem.
A série, em um de muitos momentos expositivos, afirma que Dante já possui cinco anos de experiência como caçador de demônios, o que torna ainda mais incompreensível sua constante ineficácia durante os confrontos na série. Sua caracterização oscila entre momentos de bravata sem substância e derrotas humilhantes que contradizem diretamente os poderes estabelecidos para o personagem nos primeiros episódios.
Lady, por sua vez, recebe um tratamento igualmente problemático. A personagem, que nos jogos possui uma personalidade e motivações bem definidas, é retratada como uma figura unidimensional e frequentemente antipática. A série tenta estabelecer uma dinâmica de rivalidade entre ela e Dante, mas a execução resulta em interações forçadas e pouco convincentes.
O episódio 6, dedicado a explorar o passado de Lady e do vilão principal, é um raro momento em que a série demonstra algum interesse em desenvolver seus personagens com mais profundidade. No entanto, essa tentativa chega tarde demais e não consegue compensar a fragilidade da caracterização estabelecida nos episódios anteriores.
ᐳ Antagonistas e personagens secundários sem profundidade
O vilão principal, conhecido apenas por Coelho Branco, apresenta um design visualmente interessante, mas pouca substância narrativa. Sua conexão com a mitologia da série e suas motivações são exploradas superficialmente, o que o reduz a mais um antagonista genérico em busca de poder cujo a finalidade, se colocada na ponta do lápis, pouco beneficia o próprio.
Os personagens secundários sofrem do mesmo problema. A equipe Darkcom, que Lady lidera, é composta por figuras descartáveis que sequer transcendem seus estereótipos iniciais. O vice-presidente americano, que ganha relevância na trama conforme a série avança, é uma caricatura unidimensional sem qualquer nuance ou complexidade.
Este tratamento superficial do elenco de apoio prejudica significativamente o envolvimento emocional do espectador. Sem personagens bem construídos para ancorar a narrativa, a série se torna uma sucessão de eventos sem peso emocional ou consequência dramática perceptível.
ᐳ Temas sociais e políticos mal desenvolvidos
Devil May Cry da Netflix tenta introduzir discussões sobre temas nem tão contemporâneos como xenofobia, imperialismo americano e intolerância religiosa através da alegoria dos “demônios imigrantes” – seres sobrenaturais que tentam se integrar à sociedade humana. Esta premissa poderia servir como base para uma interessante exploração temática dentro do universo da franquia.
No entanto, a série aborda essas questões de maneira superficial e desarticulada. As subtramas envolvendo os demônios macaianos e a política discriminatória do governo americano são apresentadas sem a profundidade ou contexto necessários para gerar qualquer reflexão significativa. Os temas políticos parecem inseridos artificialmente na narrativa, sem conexão orgânica com os elementos centrais da trama.
Este problema é especialmente evidente nas críticas que a série tenta fazer ao imperialismo americano e às políticas de “guerra ao terror”. Estas questões são abordadas através de diálogos expositivos e situações esquemáticas que carecem de sutileza ou profundidade analítica. O resultado é uma crítica política rasa que não faz jus à complexidade dos temas abordados.
ᐳ A relação problemática entre Dante e Lady
Retornando a um dos elementos centrais da série, temos a polêmica relação conflituosa entre Dante e Lady, que “compartilham” o protagonismo da narrativa. A dinâmica entre os dois personagens é crucial para o desenvolvimento da trama, mas sua execução deixa muito a desejar.
A série tenta estabelecer uma tensão entre Dante, meio-demônio tentando fazer o bem, e Lady, caçadora de demônios com preconceito contra qualquer ser sobrenatural. Esta premissa poderia gerar conflitos interessantes e nuances dramáticas, mas a narrativa falha em desenvolver essa relação de forma convincente e escanteia Dante a todo momento durante a trama.
As interações entre os dois protagonistas frequentemente caem no mesmo padrão: Lady demonstra desprezo por Dante, Dante tenta provar seu valor, Lady ignora seus esforços. Esta repetição, somada à falta de evolução significativa na dinâmica dos personagens, torna sua relação estática e previsível.
O clímax desta relação problemática ocorre no final da série, quando Lady trai Dante, entregando-o ao governo americano. Este momento, que deveria representar um ponto de virada dramático, carece de impacto emocional justamente porque a relação entre os personagens nunca foi desenvolvida com a profundidade necessária.
ᐳ Desserviço à franquia original
Para fãs da franquia de jogos, a série representa um particular desapontamento. Além dos problemas já mencionados na caracterização dos protagonistas, a adaptação de Devil May Cry da Netflix falha em capturar a essência do que torna DMC uma série amada por tantos jogadores.
Os jogos se destacam por seu combate estilizado, humor irreverente e uma estética visual única que mistura elementos góticos com ação frenética. A série da Netflix ocasionalmente faz acenos a estes elementos através de referências e easter eggs, mas falha em incorporá-los de maneira orgânica à sua narrativa.
Esta abordagem resulta em uma produção que parece querer agradar aos fãs antigos com referências superficiais, enquanto simultaneamente ignora os elementos fundamentais que definiram o sucesso da franquia. Para novos espectadores, por outro lado, estas referências são insignificantes e não compensam as falhas estruturais da narrativa.
ᐳ Conclusão
Devil May Cry da Netflix é uma adaptação que falha tanto em honrar o material de origem quanto em estabelecer-se como uma obra independente de qualidade. Sua narrativa fragmentada, personagens mal desenvolvidos e execução técnica inconsistente resultam em uma experiência frustrante para fãs da franquia e pouco atraente para novos espectadores.
O maior problema da série é justamente sua falta de identidade. Ao tentar equilibrar-se entre fidelidade aos jogos e abordagens narrativas originais, a produção acaba não alcançando nenhum dos dois objetivos de forma satisfatória. O resultado é uma obra que parece constantemente indecisa sobre o que realmente quer ser.
Para os fãs da franquia de videogames, a série representa uma oportunidade perdida de ver o rico universo de DMC explorado em um novo meio. Para espectadores sem familiaridade prévia com a franquia, a produção oferece pouco que a diferencie de outras animações de ação disponíveis no streaming.
Em última análise, a série da Netflix demonstra que adaptar videogames para outros meios continua sendo um desafio significativo. No caso de Devil May Cry, o resultado final evidencia a importância de compreender não apenas os elementos superficiais de uma franquia, mas a essência que a torna especial para seus fãs.
NOTA FINAL
1.5/5
★
Autor: Victor
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