Cristiane De Oliveira examina a resiliência perante o conformismo.
Um dos pensamentos mais inquietantes da humanidade sem dúvidas questiona constantemente o significado da passagem. O que acontece depois da morte e se há realmente um caminho a se seguir, e como as pessoas que ficam devem conceber aquela consciência que se foi. Esse é uma das diversas alegorias íntimas e psicológicas que o longa acaba tocando.
‘Até Que A Música Pare‘ gira em torno da personagem Chiara, interpretada por Cibele Tedesco. Chiara é matriarca de uma família que descende de italianos, que após a saída do seu último filho de casa, passa a acompanhar o marido Alfredo (Hugo Lorensatti) em suas viagens como vendedor de botecos.
A linguagem da obra conserva o aspecto cultural que a sua natureza gramática possibilita, ao se comunicar através do Tailan, língua recentemente reconhecida pelo Inventário Nacional Da Diversidade Linguística do Brasil, e que confere a uma linguagem falada no Brasil, nas regiões sul, originária da Itália. E sob aspectos culturais, principalmente em questões religiosas, o filme cria uma dualidade interessante na personagem que acaba guiando a alegoria primordial de ‘Até Que A Música Acabe‘.
Desde dos primeiros minutos, a direção alude constantemente para essa devoção religiosa da Chiara, enviesada pelo catolicismo. Porém, quando ouve uma conversa de um italiano num almoço em família, que explica a semântica do budismo, Chiara passa a se interessar por essa nova filosofia, principalmente no que diz respeito à reencarnação da consciência em corpos de animais. Isso bate com o fato dela ter ganho uma tartaruga de estimação do seu marido, dois dias depois de ter sonhado que seu finado filho Marco, não estava morto.
A partir desse momento, Chiara começa a desenvolver um laço de amizade profundo com a tartaruga, no qual quer acreditar fielmente que se trata de seu filho reencarnado. Além de embasar, através da modulação sempre interrogativa da personagem perante os outros e principalmente sobre essa nova filosofia, o que seria uma forte resiliência da Chiara perante ao conformismo de lidar com a morte do filho, o filme também aborda uma metalinguagem que expõe esse contato com a pós vida, ao menos na mente dos personagens, a partir do instante em que que consideram essa possibilidade.
As vozes que se tornam pesadelos ou sonhos representam essa semântica dramática do projeto, ainda que esse choque entre a religião base com a nova filosofia tenha tido um desenvolvimento menos estimulante, do que poderia ter sido, que teria potencializado ainda mais essa necessidade de conforto sob o luto.
Num nível de observação calma e permissiva, o filme ainda comenta sobre questões políticas que encabeçam o personagem Alfredo numa outra construção de resiliência. A da ilegalidade. Ao sonegar impostos nessas viagens como vendedor, o personagem funciona como uma ilustração ao ato de acobertar ilegalidades e de apoiar suas práticas com uma noção de necessidade, assim como a alegoria política proposta por comentários televisivos que a montagem da obra encaixa em alguns momentos. Ao se relacionar agora intimamente com o marido e essas iniquidades de perto, Chiara desenvolve ainda mais suas frustrações de conformidade, antes pela morte, agora pela corrupção no seu seio familiar.
Eu gosto muito da elaboração do filme a partir de um equilíbrio psicológico entre melancolia e questionamento, que se costura sempre por essa relação alegórica da personagem com a tartaruga Filomena. A atuação da Cibele Tedesco é essencial para traçar essa subjetividade religiosa da personagem e o filme caminha muito bem em enquadramentos que sempre capturam nela um significado de luto esperançoso.
Em suma, apesar do seu ritmo vagaroso e de algumas adequações de planos que soam mais como artifícios de montagem do que como necessidade gramatical no contexto do filme, o saber lidar com a psicologia pautada em conformidades interrogativas da personagem principal cria um embasamento interessante num saldo geral.
A fotografia, dúbia entre o luto mais opaco no íntimo do relacionamento entre Chiara e Alfredo, com uma esperança mais quente e paisagística na câmera mais conceitual, mirando a serra gaúcha, forma uma identidade visual muito boa.
E tal identidade visual, que ao se tornar específica dentro da psiquê ambivalente de contatos religiosos e morais, confere uma estadia um tanto quanto curiosa no seio matriarcal de uma família tão fora de sintonia, mas que produz uma grande reflexão comumente sobre a natureza do pensamento humano.
NOTA FINAL
3,5/5
★ ★ ★ ★
Autor: Flávio Júnior
Agradecemos a Pandora Filmes pelo convite!