CRÍTICA: MANAS
“Manas” (2024): Uma ficção não tão ficcional assim. Um verdadeiro soco no estômago.
Em seu novo longa-metragem, Mariana Brennand Fortes conduz o público por entre os desafios da vida de Marcielle – interpretada por Jamilli Correa – e de sua família, em meio à sensível realidade da Ilha de Marajó, no estado do Pará.
Há um carinho evidente na mise-en-scène da obra, aliado a um cuidado minucioso na escolha do que revelar e do que manter fora de cena. A direção é honesta e meticulosamente pensada. Em “Manas”, a câmera vai além de seu papel como narradora, ela também se torna uma personagem. Seus posicionamentos mergulham o espectador na narrativa, criando a sensação de que estamos lado a lado com Marcielle e sua família durante toda a trajetória do filme.

Além de tudo isso, a fotografia de Pierre de Kerchove, a qual anda de mãos dadas com a direção, também diz muito a respeito da narrativa. As cores da película são cruas, nada muito saturado e/ou colorido, parece haver uma falta de coloração, um cenário cinza e existe uma possível mensagem por trás disso: A fotografia “sem filtro” diz respeito a verdade bruta da vida, que ela é isso mesmo que se vê, principalmente no contexto da obra.
Há uma ausência de sentimentos concretos, uma espécie de inércia emocional que se manifesta, sobretudo, através das cores. O filme possui, de fato, algumas cenas que são exceções a esse ponto, como quando Marcielle e sua amiga Cíntia vão a festa dançar. Este é um dos únicos momentos do filme que tudo é colorido, pois enfim a protagonista experimenta uma emoção genuína e palpável: a felicidade – ainda que efêmera – em meio ao caos que define sua vida.

O filme adota uma abordagem naturalista, na qual o silêncio e os sons ambientes assumem papéis essenciais. A ausência de uma trilha sonora convencional dá espaço para que os ruídos do cotidiano – como o som dos tiros, das respirações e do próprio ambiente – se sobressaiam, intensificando uma atmosfera crua e realista. A edição (Ricardo Reis, Miriam Biderman) e mixagem (Armando Torres Jr.) de som são meticulosamente trabalhados para capturar a essência do ambiente da Ilha do Marajó, proporcionando uma experiência sensorial que transporta o público para o cenário da narrativa.
Ademais, uma das maiores qualidades que o filme carrega é o dom de trazer a naturalidade para os fatos em cena, tudo acontece de forma espontânea – e isso também se dá pelas atuações que são um dos pilares que sustentam a profundidade emocional e a autenticidade da narrativa. As performances de Jamilli Correa (Marcielle), Rômulo Braga (Marcílio) e Fátima Macedo (Danielle) formam o núcleo emocional do filme e sustentam sua potência narrativa. Com diferentes registros e intensidades, os atores criam uma teia
afetiva crível, sensível e profundamente tocante, que ecoa no espectador mesmo após o fim da projeção.
Jamilli Correa, em sua estreia como Marcielle, entrega uma atuação surpreendente. Sua interpretação é silenciosa, contida e intensa, refletindo com precisão a vivência de uma adolescente imersa em um ambiente de violência estrutural. Ela comunica muito com o olhar e com o corpo, seus silêncios dizem mais que palavras e sua presença é magnética.
Já Rômulo Braga, no papel de Marcílio, oferece uma performance complexa. Em vez de recorrer a estereótipos fáceis, ele constrói um personagem ambíguo, com camadas de ternura e brutalidade que coexistem. Essa dualidade torna Marcílio ainda mais inquietante, ele é, ao mesmo tempo, pai e agente da opressão. E Fátima Macedo, como Danielle, mãe de Marcielle, também brilha com uma atuação comovente. Sua personagem habita um espaço de negação e impotência e a atriz traduz isso com uma expressividade contida, quase resignada, evitando julgamentos e oferecendo uma leitura humana e dolorosa da figura materna em meio ao colapso familiar.

E falando sobre Danielle, a mãe, nota-se que ela não é uma vilã, mas também não é uma heroína. Danielle é, sem dúvida, uma personagem esférica e complexa que cria uma certa inquietação a quem assiste. Ao longo do filme, sua relação com a violência vivida por sua filha se desenha por meio de silêncios desconfortáveis, olhares desviados e ações ausentes. Ela parece saber – ou, ao menos, intuir – o que acontece, mas não verbaliza, não age, não protege. E isso é, talvez, o aspecto mais dilacerante de sua personagem. A omissão da mãe não deve ser lida apenas como fraqueza individual, mas como um reflexo de uma sociedade patriarcal e estruturalmente violenta, onde muitas mulheres não têm a quem recorrer e romper o ciclo exige forças e apoios que nem sempre existem. O filme não a justifica, mas também não a condena. Em vez disso, expõe seu dilema e provoca o público a pensar sobre as muitas formas que o abuso e o silêncio podem tomar dentro de uma casa. Ela é, sem dúvida, uma das personagens mais fascinantes da obra.
Outrossim, a obra é extremamente cultural. Ao decorrer da projeção, percebe-se muitos aspectos familiares, o que faz com que o público, além de se identificar, sinta uma espécie de conforto para com o filme. A direção de arte de “Manas” é uma peça-chave na construção do universo do filme, utilizando cenografia, figurino e estilo visual para aprofundar a compreensão do público sobre a história e os personagens. A colaboração entre Marcos Pedroso (Direção de arte), Kika Lopes (Figurino) e Luiz Gaia (Caracterização) demonstra um compromisso com a autenticidade e a sensibilidade cultural, elementos essenciais para proposta de narrativa.

O roteiro da obra oferece ao público uma série de contrastes que provocam e desestabilizam, tensionando a narrativa de maneira muito sutil. Um exemplo marcante ocorre na cena em que Marcielle ensaia uma dança na escola ao som de uma música religiosa que exalta Jesus. Ao fundo, quase como um detalhe silencioso, uma colega – aparentemente também com cerca de treze anos – aparece grávida. A dualidade é exatamente essa: Uma criança de treze anos grávida dançando uma canção que fala sobre Jesus. É nesse tipo de cena que o filme expõe, sem didatismo, as contradições brutais da vida que retrata.
Na obra, a violência que atravessa a narrativa não se apresenta de forma explícita ou “espetacularizada”, mas sim sussurrada, sugerida, contida nos gestos, nos silêncios e nos olhares. O abuso praticado pelo pai da protagonista é retratado com uma delicadeza dolorosa, que torna a experiência ainda mais angustiante para o espectador. A tensão não vem do que é mostrado diretamente, mas do que se percebe nas entrelinhas: nos toques silenciosos, nas portas entreabertas, nas presenças incômodas.
Essa escolha estética e narrativa – de não tornar o abuso explícito – amplia a sensação de sufocamento. A câmera se torna cúmplice da inquietação, muitas vezes parada, observadora, como se denunciasse aquilo que a própria personagem não consegue nomear. O som (ou a falta dele) reforça esse mal-estar. O silêncio se torna ensurdecedor, e os ruídos do cotidiano adquirem uma carga emocional perturbadora.
A direção de Marianna Brennand nos conduz por esse labirinto de tensão com firmeza. Ela não expõe Marcielle, mas também não alivia o peso do que está sendo vivido. A agonia que se instala é justamente a do abuso que não é dito, da violência que se normaliza dentro de casa, da infância que é roubada sob os olhos de todos e, ao mesmo tempo, sob o silêncio cúmplice da comunidade e da própria família. Ao tratar o abuso de forma silenciosa, “Manas” não suaviza a dor, pelo contrário, a torna ainda mais insuportável, porque a esconde sob a pele da rotina. O incômodo que o filme provoca é justamente esse de revelar, com extrema sensibilidade, que a violência mais cruel muitas vezes não grita. Ela sussurra. E mesmo assim, fere profundamente.

Já vimos isso antes em “Sonhos Roubados” (2009) – Dirigido por Sandra Werneck e protagonizado por Nanda Costa, Amanda Diniz e Kika Farias -, o qual é um filme parcialmente semelhante a “Manas” (2024). Ambos os filmes tratam da perda precoce da infância e da adolescência, seja pelo abuso, pela maternidade forçada, ou pela necessidade de assumir responsabilidades adultas em contextos de abandono. No fundo, as duas obras são um retrato de um Brasil que falha com suas meninas. Elas denunciam não apenas os indivíduos que cometem abusos, mas as estruturas sociais que sustentam essas violências, tais quais como o machismo, o abandono estatal, o racismo e a desigualdade econômica. São filmes que dão rosto e nome às estatísticas, que nos tiram do conforto e nos obrigam a olhar para o que normalmente é ignorado.
“Manas” é um filme profundamente necessário. Ao abordar com sensibilidade e coragem a violência silenciada que atravessa a vida de tantas meninas brasileiras, ele se torna um instrumento de denúncia e empatia. Sua importância vai além do cinema, ele toca debates urgentes sobre infância, abuso, desigualdade e invisibilidade social. Além disso, a equipe de produção merece aplausos por sua entrega ética e estética. A direção certeira, a fotografia cuidadosa, a direção de arte sensível e, sobretudo, as atuações marcantes que constroem uma obra que emociona, incomoda e permanece. A obra não apenas representa vidas, mas às honra.
NOTA FINAL
5/5
★ ★ ★ ★★
Autor: Alexandra Coral
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