Martin Provost busca na suavidade um retrato conflituoso de um homem vazio perante ao amor feminino.
Pierre Bonnard foi um grande artista do pós impressionismo na França. Vanguardista do Les Nabis, um grupo de jovens artistas daquele período, Bonnard é considerado um pintor da felicidade pelo seu estilo harmonioso de usar a luz a favor da serenidade dos seus quadros, transmitindo uma aura sempre otimista em seus desenhos. A obra Bonnard , Pierre and Marthre ( ou A Musa De Bonnard no Brasil ) do diretor Martin Provost é uma biografia que além de transmitir essa devoção do Bonnard às telas e a sua submissão aos seus estúdios de arte, também retrata uma de suas musas, a bela Marthe De Méligny ( Cécile de France), com quem se casou em 1925.
Enfaticamente a história se fixa na personagem como uma lente a obsessão de Pierre aos quadros que pintava, enquanto usa a montagem capitular para avançar o quanto isso incomodava ou potencializava a relação de Marthe com o pintor, que durou até o ano de 1942. A musa é o modelo de um pintor a ser desenhado, e é ótimo a percepção de Provost para fazer disso um material biográfico romântico se parecer com uma avantajada jornada de conhecimento idealizado por uma pintura e seu artista.
Foi uma relação bastante conflituosa por parte de Marthe, que envolveu o seu esforço constante pela atenção de Pierre. O filme retrata o pintor como um autor concentrado, na maior parte do tempo, alheio ao relacionamento que tinha com a esposa e para o seu entorno familiar. Seu foco é estritamente voltado aos quadros, uma compulsão ( ou competência) que modela o personagem e a forma como ele é encenado praticamente o longa inteiro.
O drama tem um tom seco, porém capcioso para integrar a neutralidade quase enigmática da imagem sempre alienada do pincel ao que nós podemos definir como um relacionamento.
A primeiro momento, Méligny é um alter-ego da expressão devotada de Pierre, sendo protagonista de vários quadros que ele pinta, tendo até uma relação íntima de confiabilidade artística que o filme aborda com muita sutileza, porém com igual expositividade. As cenas de sexo entre Cécile de France e Vincent Macaigne se ocupam dessa visão de desprendimento social que cria as noções completas que um pintor acaba tendo de sua musa para criar, abordando bem um puritanismo exclusivo e neutro de Pierre Bonnard ao simbolismo feminino que ele busca alcançar com Marthe. Martin Provost exemplifica essa pura neura da arte em dominação social até na imagem, quando não esconde uma estática artística nos cenários através do desfoque, mas sim os mantendo integrados na misce in scene como quadros rígidos e focalizados, trazendo o plano de fundo francês como literalmente um quadro impressionista.
Há uma razão contemplativa do Provost em estabelecer o isolamento claro desses planos de fundo de imagem como uma arte sempre reverente aos arcos dramáticos principais. O toque de harmonia só tem esses desmanches quando o filme parte a analisar essa obsessão isolante do Pierre no olhar de Marthe, que além de se tornar uma protagonista clara da história, traz ambiguidade na forma como se enxerga, amando ou só atuando como espelho de uma arte viciante. É interessante a forma como o enredo aceita a implicitude da narração em torno de Pierre, se abdicando de ir a fundo atrás dos Les Nabis ou a sua atuação como pintor na guerra. Em vez do grande prêmio Carnegie, o filme dá ao seu Pierre a figura de Marthe. Ela passa a desenvolver, e muito bem, o lado ” inacessível” do retratado.
Existe uma certa sensação incômoda em Marthe sobre a afirmação do amor de Pierre por ela, além de nunca se sentir totalmente bem com essa neura obsessiva de Bonnard em pintar. Ao mesmo tempo em que ela estimula essas indagações, com um desenvolvimento que subtrai a amabilidade pela arte e a substitui pela necessidade de um amor físico e completo ( o que também envolve ciúmes e pretensões sobre filhos e oficialização de sentimentos) Marthe se condiciona a um processo muito dramático, porém sempre suavizado pelo tom alheio de Pierre, de se impor perante isso.
A montagem alcança muito bem essa relação de agressividade ( por parte de Marthe na ânsia pela afirmação do amor ) e da passividade de Pierre, que de fato, irrita Marthe. Através do tempo, o envelhecimento dos personagens traz novas atualizações sobre essa troca, num estilo de linguagem que não se compromete a deixar de lado a suavidade das tomadas em contraste com a fúria introspectiva de Marthe. Interessante que isso só muda com a introdução da personagem da Stacy Martin, Reneé. Pierre acaba conflitando o romance com uma traição em viagem artística, estabelecendo no terceiro ato da obra, uma agora saída do retratado do campo da somente perspectiva de Marthe.
Provost volta ao tema da felicidade ( que ele sempre enfatiza no estilo das pinturas, que a todo momento são focalizadas pelo filme como alívio dramático) para tentar debater Pierre sob um terceiro olhar. Aquele que o subverte completamente. Reneé é o lado obscuro de uma passividade que nunca fugiu da relação duvidosa de Pierre e Marthe. A referência à Caravaggio em dado momento do filme reflete esse temperamento agora finalmente desperto em Pierre Bonnard, traindo a sua mansidão sempre bem ancorada pela estética suavizada do longa para ser tentado por uma obscuridade, que toma conta das cenas que envolvem Reneé e Pierre, com grandes referências artísticas mais soturnas, que de certa forma copiam a tensão dramática, transferida para um triângulo amoroso pressionado. Que não necessariamente envolve o tom de vilania, mas uma nova incógnita sobre a visão de Pierre a esses relacionamentos. A cena do trisal por exemplo tem esse pêndulo sugestivo que nos volta a essa dúvida.
Suavizando e chegando ao drama mais forte de acordo com a auto revelação de Pierre em perspectiva de sua esposa , o longa concilia muito bem a passagem do tempo através da estética e também da maquiagem, aceitando se referir ao pintor como substâncias criacionistas dos relacionamentos que teve. Marthe e Reneé por exemplo, nos exemplificam nuances muito claras do retratado, mesmo que o filme não busque muito nas efetivas ações delas com a sociedade artística. É uma obra na intimidade, que mesmo que lide muito bem com o impressionismo ( a forma cenográfica de enquadrar as discussões e o devotismo aos quadros que Pierre pinta ao longo do tempo ) ,ainda sugere um surrealismo muito bem empregado para compor simbolismos que ajudam a manifestar essa idealização feminina numa figura tão vazia por si só, mas tão complexa pelo olhar delas e tão necessária pela arte que pinta.
Há situações esquecidas, é claro. Não posso deixar de mencionar o quão estranho é o desleixo do filme perante a um diagnóstico iminente de morte que o texto concilia aos problemas pulmonares de Marthe, mas que some no desenrolar da história, tornando esse aspecto negativamente desprendido da personagem. Pelo nível de importância, tal fato naturalmente geraria ações mais evidentes no enredo e curvas dramáticas mais sinuosas.
Ainda assim, acho que o Provost brilha muito compondo os três aspectos do ideal feminino, numa suavidade tão ascendente que encanta. Ele parece ironizar o fator da biografia, tornando dispensável a apresentação do seu próprio retratado, para se atentar mais a quem ele teve como ligação sentimental, seja por estímulo, inspiração ou amor – o pêndulo sugestivo que nunca se define. E como tudo ele transmite na tela, é realmente como se o retratado tivesse pintado a si mesmo através das musas, que o filme dialoga como a verdadeira base existencial de Pierre Bonnard.
A Musa De Bonnard é um romance muito lindo, sobre o preenchimento sentimental de uma alma alheia a tudo e devotada a arte.
NOTA FINAL
4
★★★★
Graduando História por conta do quarteto mágico de 70, lembrando da paixão por paleontologia por conta do Spielberg de 93 e escrevendo cinema por conta do Perkins em 60. Apaixonado pela cinefilia e essas contas essenciais. Redator-blogueiro – Analista de cinefilia