Guto Parente usa a criação como polivalência artística
Estranho Caminho é o mais recente longa do diretor Guto Parente. Nele, acompanhamos a jornada de um jovem cineasta que está prestes a lançar o seu primeiro longa-metragem em um festival de cinema, mas que em meio a pandemia do Covid-19 no Brasil, se vê obrigado a se reencontrar com o seu pai, num enredo que entre mistérios e tensões, possibilita o filme a trabalhar com vários sentimentos dentro de um relacionamento intimista.
Ainda que o filme toque com bastante cuidado a questão pandêmica do cenário onde o protagonista David ( Lucas Limeira ) atua, se atentando bem a cenografia desértica de Fortaleza, acentuando também detalhes importantes aos elementos de cena que condizem a nortear o estado recente que nós passamos com a pandemia, a sua história se foca muito mais numa relação introspectiva.
Os planos mais fechados referem-se a uma jornada de auto percepção constante, em que David passa a encarar a realidade abrupta que desmancha seu sonho de uma forma bastante imediata. O grande mérito do roteiro nesse ponto é estruturar uma forte conexão sentimental com o protagonista, tornando a engrenagem rítmica do longa fluída e com ótimas concepções de mundo se baseando na realidade afastada e vazia do cenário pandêmico.
A dramaturgia toma espaço numa concerne de urgência, que faz com que o protagonista chegue a Geraldo, seu pai, que sob simbiose muito potencializada da atuação de Carlos Francisco com uma perfeita implicitude narrativa que a montagem consegue traduzir em mistério, doa ao filme uma nova camada de jornada, trabalhando agora com uma possível reiteração afetiva de David com o seu pai.
O que seria porém uma concentrada abordagem dramática de pai e filho, que talvez fosse emular a mesma zona temática de A Filha Do Palhaço ( Pedro Diógenes ) outro filme cearense que se tornou popular recentemente, mitigando a reconquista da paternidade de um lado e a busca por um amor conselheiro de outro como perdão de ausência, surpreende no fim das contas por uma incrível coalizão estética e de gêneros, que acaba subvertendo muito bem todas as saídas narrativas que virtualmente se sugerem.
O ambiente que ora pudesse representar estabilidade, logo toma a forma de um lugar desconfortante, em uma estranha variação de reações que Geraldo tem com a presença urgente de David. Nessa faísca que o filme sustenta pela forma e pela utilização criativa das imagens, essas como relativas a um modelo nunca definitivo dos sentimentos, em que Guto Parente até me fez ter lembranças dos enquadramentos do Yorgos Lanthimos, só que com uma devoção mais compenetrada no choque pelas inesperadas reações do protagonista ao mundo intimista que o cerca, do que por um humor de descoberta que Lanthimos preserva.
Eu particularmente gosto muito da forma como o Parente lida com essas corajosas e interessantes trações simbólicas através da encenação, pendendo cada vez mais para uma atenção mais dúbia de toda a aparência do longa.
Afinal, é quando o filme se deixa revelar como polivalente esteticamente acima da esperada dramaturgia íntima e urgente que a problemática principal propunha, que suas ótimas transições de gêneros e também de movimentos se destacam. Mas devo pontuar com ênfase que não são transições aleatórias. Tanto direção, roteiro e edição se atentam a conciliar elas sem perder o foco narrativo, até utilizando dele para justificar essas transições.
Um exemplo bom é quando o David mostra o seu filme experimental para o seu pai, que seria lançado como longa no festival, e a direção se apropria disso não só para aludir sua capacidade em realmente criar imagens positivamente peculiares, como também para concretar em determinado momento a sua maquinação a um horror pós mistério, levando em conta que esse filme experimental é uma manifestação artística do expressionismo alemão, movimento este que Guto Parente se apropria constantemente para polarizar a cosmologia interna do longa.
Estranho Caminho até se assume como uma experimentação além da aparência, mas nunca ignora suas facetas mais cotidianas e neo-verossímeis com o cenário em que se cumpre, um nordeste que abriga sua narrativa como uma obra cinematográfica metalinguística com indefinições sentimentais.Usa uma criação que paquera muitos movimentos do cinema individualista ( Lanthimos, Lynch, Wiener ) e também gêneros em rotação, sempre saindo da sutileza que carrega o protagonista em busca de um objetivo tirado de forma tão repentina, para se distribuir em uma atração inteligente das imagens, que indicam mistério, horror, surrealismo e até uma reverência ao abstracionismo.
Talvez só tenha faltado uma condução mais encorpada do drama na perspectiva do pai, que mesmo sendo muito funcional na questão indefinida de tudo o que o David vive, em prol dessa ousada poli dimensão da estética, vagueia entre um passado afetivo que não consegue convencer tão bem, mesmo inteirado em um conto de referências experimentais.
Mas ainda assim, Estranho Caminho compensa muito bem esse passado inacessível do relacionamento com uma reconquista muito inteligente do tributo individual do cineasta perante tudo isso, no qual se arma de uma metalinguagem muito bem feita e estilizada para fazer de suas próprias criações um grandioso ato de indefinições.
No qual, se modela em uma ótima engrenagem narrativa, dosada perfeitamente pelas elipses que aceitam um proveitoso dinamismo a mise in scene ( como na cena em que David pede um celular emprestado para o segurança do hospital, onde temos um vislumbre prático da operação de cortes para eludir progressão inteligente de cenas) e pela empatia que sentimos por um protagonista de tão boa espontaneidade.
O longa foi um destaque no Festival de Tribeca, uma competição internacional com enfoque em produções independentes e chega aos cinemas no primeiro dia do mês de Agosto. O filme de Guto Parente tem a produção de Tardo Filmes e a distribuição da Embaúba Filmes. Vale a pena conferir.
NOTA FINAL
4
★ ★ ★ ★
Autor: Flávio Júnior
Flávio Júnior
Graduando História por conta do quarteto mágico de 70, lembrando da paixão por paleontologia por conta do Spielberg de 93 e escrevendo cinema por conta do Perkins em 60. Apaixonado pela cinefilia e essas contas essenciais. Redator-blogueiro – Analista de cinefilia