CRÍTICA | LISPECTORANTE
“Lispectorante: Palavra inventada, tradução do intraduzível. ‘Oxe’. ‘Pra’ mim, lispectorante é uma droga ilegal feita numa manhã de um carnaval que se aproxima pra ‘espectorar’ mágoas, prazeres, visgos e catarros no rio que vira chá.”
O filme de Renata Pinheiro não apenas apresenta uma narrativa – convida o espectador a uma experiência sensorial completa. Somos inseridos em um sonho febril de atmosfera alucinógena, onde suspense e mistério pairam no ar enquanto acompanhamos Glória Hartman (Marcélia Cartaxo) em sua crise existencial e jornada por cura e autoconhecimento.

Apesar do título sugestivo, “Lispectorante” não é propriamente sobre Clarice Lispector, mas carrega sua essência. A alma, a lembrança, a tristeza e a complexidade da escritora permeiam cada quadro. A escolha de Marcélia Cartaxo para protagonizar o filme revela a perspicácia de Marcos Castro e Tavinho Teixeira na direção de elenco – a atriz que já havia dado vida à adaptação de “A Hora da Estrela” (1985) de Suzana Amaral retorna a um universo lispectoriano, criando uma camada adicional de significado.
A mise-em-scène de Renata Pinheiro é curiosamente morna, porém certeira. O uso frequente de imagens de apoio – da praça, de fragmentos da casa onde viveu Clarice – revela menos um conceito estético definido e mais um esforço para elevar um roteiro que, por si só, apresenta fragilidades. A direção, embora não revolucionária, salva o filme. À semelhança de “Motel Destino” (2024), a obra encontra sua força na estética visual em detrimento de um roteiro que se mostra confuso.

O texto fílmico se fragiliza justamente na tentativa de construir conflitos concretos. Os obstáculos enfrentados pela protagonista parecem arbitrários e mal estruturados, sem resolução satisfatória. As frequentes perdas de espaço-tempo, principalmente tempo, desorientam o espectador, apesar da linearidade que se estabelece em determinados momentos.
Surge então o dilema central: “Lispectorante” exige compreensão racional ou apenas entrega sensorial? O entendimento da obra se constrói de dentro para fora, revelando-se mais complexo do que aparenta. O que inicialmente parece um filme de conceito forçado gradualmente absorve o espectador para uma realidade surrealista onde a lógica se torna insuficiente. A partir de certo ponto, é preciso assistir com o coração, não com a mente.
Não seria essa, afinal, a experiência de ler Clarice? Aparentemente simples, mas quanto mais se adentra, mais o leitor se afoga em uma atmosfera profundamente interessante e complexa, repleta de sentimentos. “Lispectorante” segue esta mesma lógica do ilógico.

“Eu sou mansa, mas minha função de viver é feroz” – a citação de Clarice encarna perfeitamente Glória que, apesar das adversidades (a batalha judicial por sua casa, o roubo de seus pertences), persiste em buscar uma luz no fim do túnel. Seu refúgio é a criação de uma “fenda interior temporal” – não apenas metáfora visual, mas recurso narrativo que revela camadas de subjetividade.
Ao atravessar essa fenda, Glória acessa visões que a conectam com seus medos, desejos e memórias, mergulhando em uma jornada tipicamente lispectoriana – não linear, intuitiva e repleta de silêncios densos. A casa, o tempo e a própria presença espectral de Clarice funcionam como catalisadores de uma catarse profunda.

A personagem habita a tensão entre lucidez e devaneio, vida e arte, matéria e espírito. Marcélia Cartaxo entrega uma performance contida, rica em microexpressões, silenciosa como um texto de Lispector. Glória não se explica – sente-se. É essa ambiguidade que torna a personagem tão rica e alinhada com a proposta estética do filme.
Na construção atmosférica, a direção de arte utiliza com sagacidade tons intensos de verde e rosa em determinadas cenas – particularmente nas sequências da fenda – conferindo uma qualidade etérea à obra. O espectador habita um sonho na maior parte do tempo, em uma abordagem que evoca David Lynch.
Joana Claude e Ananias de Caldas, na direção de arte, realizaram um trabalho meticulosamente projetado, retratando ambientes com a autenticidade de Recife. Essa característica “abrasileirada” traz conforto e familiaridade ao longa-metragem, dialogando com as obras de Clarice. A cidade transcende o cenário para tornar-se personagem – um espaço simbólico e poético onde passado e presente se entrelaçam, e onde a subjetividade da protagonista se manifesta através de uma estética visual rica e evocativa.

O desenho sonoro intensifica a estranheza da experiência. Guile Martins, operador de som, construiu uma paisagem auditiva onde os diálogos parecem “re-dublados” e os sons distorcidos nas sequências posteriores aos sonhos indicam a natureza onírica das cenas. Este recurso, reminiscente de obras como “Touki Bouki” (1973) de Djibril Diop Mambéty, eleva o som à condição de personagem, tornando-o elemento fundamental para a compreensão da narrativa.
O design sonoro transcende a mera função técnica – torna-se construção artística essencial para a atmosfera única do filme. O som se estabelece como linguagem expressiva em diálogo direto com a estética visual e narrativa, proporcionando uma experiência cinematográfica profundamente imersiva e sensorial.
Embora enfrente fragilidades estruturais em sua dramaturgia, “Lispectorante” se sustenta como um manifesto sensível sobre memória, identidade e potência criadora do feminino. Afirma-se como obra que se sente antes de se entender, deixando ecos duradouros na mente e nos sentidos de quem se permite atravessá-la. Apesar dos pesares, merece ser visto com mente aberta – em homenagem à própria Clarice Lispector.
Agradecemos a Embaúba Filmes pelo convite.
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